terça-feira, 30 de outubro de 2012

Trinta de outubro.

supresa, um telefonema às 6:55 da manhã de alguém que nunca liga. achando que era engano, uma discagem errada, desliguei e voltei a dormir. surpresa, um sonho bom com alguém com quem nunca sonho, uma sensação de conforto, abraço e torno a acordar. e o dia apenas começa. retorno a ligação. uma voz triste e séria: Ana, o Paulinho morreu. como assim? morreu, enterro hoje, 15 hs. me dá uma carona? vou contigo. tramas. a vida em tramas, tecendo tramas. um emaranhado. ainda meio abobada lembro de ter dito: vou me arrumar e estou pronta as 15hs. nesses dias tão estranhos o cemitério tem sido bastante frequentado. 
esqueceu de dizer ao telefone: não um paulinho qualquer, mas o Paulo, o cara por quem tu tremeu, queimou, não qualquer cara, não qualquer Paulo. um tempo em que apenas desejava a sorte de um amor tranquilo e, nas escolhas tortas  de um coração confuso, acabei mergulhada em dor e tristeza, tudo junto num pacote bonito. com laço de fita e tudo mais. alguém que peitou umas broncas feias e nem tinha porque fazer... alguém que me apresentou os beatinks, alguém que me levou a fazer um programa de rádio, alguém que conhecia arte, alguém com sensibilidade, alguém com quem perambulei pelas ruas, alguém com quem  aproveitei poucas madrugadas, alguém com quem tomei uma cachacinha em botecos dos mais botequeiros. alguém maldito. sempre um maldito, no sentido beatnik do termo maldito. alguém que amava um vinho, alguém que amava uma coisa, um haxixe. alguém que ouvia jazz e caetano. quieto. magro. camiseta branca e jeans, sempre. uma boina ocasionalmente. alguém com quem eu não falava, as sequelas foram grandes demais. eu era apenas uma menina. e ele não me entendeu. ele me apresentou a escrita de Kerouac. limpa, contínua, sem pontos, sem vírgulas, uma frase interminável, uma narrativa sem respiração. e também Bukowski, o velho ateu e à toa. ele era "chique". era um taurino. era quente. eu lembro e quase sinto o cheiro. me sentia desconfortável toda vez que o via na rua. não conversávamos mais. nossos filhos brincavam juntos. quatro meninos com as mesmas idades. 
estou prestes a te ver pela última vez isso é estranho demais pra mim. não me acostumo. morrer não vale. e nessa trama de hoje os contatos de muito tempo retornam e tudo aperta. a saudade, a repulsa, tudo tudo que não vibrava aqui faz tempo. sou outra. eras outro acredito. um velho. estavas velho, cabelo branco, uma magreza maior ainda, um passo vagaroso. tudo tua doença? não sei. estou prestes a pegar uma carona com alguém que adoro mas que mantenho distância, uma distância saudável. alguém que um dia me disse, lá ainda no quarto de solteira na casa da mãe: se não fosse o medo eu te comia aqui e agora. essa tua morte assim, sem aviso prévio, mexendo em tudo. juntando pessoas. só tu, meu amigo querido, só tu. pra ti, nessa hora, meu velho amor, um Bukowski. celebração de uma partida para sempre. te cuida. até mais.


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...não me falta casa
só me falta ela ser um lar
não me falta o tempo que passa
só não dá mais para tanto esperar
para os pássaros voltarem a cantar
e a nuvem desenhar um coração fechado
para o chão voltar a se deitar
e a chuva batucar no telhado...
Arnaldo Antunes - A casa é sua