terça-feira, 13 de novembro de 2012

AMAVISSE


I
Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.
No Amanhã.





Hilda Hilst -Amavisse - 1989.






segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Despalavra

Despalavra - Manoel de Barros

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidade de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas.
Que os poetas podem pré -coisas, pré-vermes, podem pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem comprender o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

Universo

Ela diz: criei um universo aqui. Eu gosto. Pode ser que diga isso para todos, afinal assim são os artistas. Não quero acreditar. Acredito que criou muitos, mas não sei se disse todos. Fiquei feliz por ter dito. As palavras reverberam no universo e, com isso, realizam-se.
O sofá andou. Veio compor o universo. Ah, essas bagunças dela! São adoráveis uma vez por mês. E todos os planos? Todas as ideias. Ela é uma doida mesmo. Quando eu te digo isso, estou falando que a tua doidera é real, como a tua lucidez. São muitas coisas numa pessoa só. Isso pra mim é que é a loucura. As coincidências também são doidas, tu sabes bem. Te ligo. Era essa música que eu escutava:
Viu bobona? Palavras nas pontas dos dedos, espalhadas em gestos.
Romântico? Será o que sou por escutar McCartney e lembrar dela? Pagando mico, dando um "bandeiraço"? E como posso deixar de sentir e de dizer? Mas sei que ela não vai ler. Agora está ocupada, depois não vai lembrar desse espaço. Estou protegido. Anônimo na internet. 
Ela, ah ela. Ela tem charme e usa. Sabe chegar com aquele jeitinho. 
Aqui, agora, um incenso e o presente que tu me deu. Descanso. Preciso aprender a ir dormir mais cedo. Tanta coisa ficou por fazer só para poder te ver um pouquinho. Acordar cedo. Recomeçar a semana e essa vai ser longa e trabalhosa. No final dará tudo certo, estarei um pouco cansado, posso querer me cansar de outro jeito. Cansar no braço dela, que abusa de mim. 
Aprendo com ela. Me ensinou, por exemplo, a diferenciar Lennon de McCartney, em timbre e em criação. Me deu uma pequena lição de Corel. Prometeu seguir me ensinando. 
A vida fica lenta perto dela. O tempo para.
Me convida para almoçar, me alimenta, cuida de mim um pouquinho. Tem coisas que dá vontade de matar. Pequenas coisas que quase não importam perto do universo, da maçã (já falei da maçã? não? outro dia então...), do abraço, dos beijos. 

... Pra você guardei um universo
Quando falta espaço eu faço um verso
e durmo na canção...
(Nei Lisboa - Romance)

sábado, 3 de novembro de 2012

A maçã

Só porque acorda monstrinhos mágicos que vibram por dentro...

Uma música colorida preenche o espaço,
são os monstrinhos despertos.
Se eu fosse um violão estaria tocando.
A lua está bonita.
A rua está deserta.
A cama está repleta.
A roupa está no chão.
A guitarra está na mão,
o amor sobre o colchão.




...não me falta casa
só me falta ela ser um lar
não me falta o tempo que passa
só não dá mais para tanto esperar
para os pássaros voltarem a cantar
e a nuvem desenhar um coração fechado
para o chão voltar a se deitar
e a chuva batucar no telhado...
Arnaldo Antunes - A casa é sua